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Em memória a Leo Pessini, ex-superior geral da Ordem dos Clérigos Regulares Ministros dos Enfermos – Camilianos e um dos principais expoentes na discussão sobre bioética no Brasil, a IHU On-Line publica hoje uma entrevista com pesquisadores que analisam seu legado para a discussão interdisciplinar entre ética e saúde. Leo Pessini faleceu no dia 24-07-2019, em São Paulo.
Padre Leo, como era conhecido, nasceu em 14 de maio de 1955, em Joaçaba, Santa Catarina. Fez sua primeira profissão religiosa na Ordem em 1975, e professou os votos perpétuos em 1978, sendo ordenado sacerdote em 1980. Em 2014 foi eleito o 60º superior geral dos Camilianos. Graduou-se em Filosofia pelo Centro Universitário N. Sra. da Assunção e em Teologia pela Pontifícia Universidade Salesiana de Roma, fez mestrado em Teologia Moral pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e doutorado em Teologia Moral pela mesma universidade. Foi professor no Programa de Bioética do Centro Universitário São Camilo, em São Paulo, e professor colaborador da Universidade do Vale do Sapucaí – Univás. Também foi vice-reitor do Centro Universitário São Camilo, em São Paulo, superior da Província Brasileira dos Camilianos e presidente das Organizações Camilianas no Brasil.
Entre suas obras, destacamos a trilogia sobre bioética de final de vida: Distanásia: até quando investir sem agredir (Loyola, 2a.ed., 2007), Eutanásia: por que abreviar a vida (Loyola, 2005) e Humanização e cuidados paliativos (Coord., 6a.ed., 2014). Para uma visão geral da bioética, escreveu ainda Problemas atuais de bioética (Ed. Loyola, 11a.ed., 2014).
Leo Pessini era um grande parceiro do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Na última entrevista que nos concedeu, intitulada “A crise nas instituições de saúde católicas e o desafio de ser um hospital de campanha”, em janeiro de 2018, analisou a situação dos hospitais confessionais e refletiu sobre a mensagem do papa Francisco para o dia Mundial do Doente. No ano anterior, em 2017, na entrevista intitulada “Em busca de uma ética do cuidado e da proteção, e não da autonomia absoluta”, comentou o discurso do papa Francisco sobre o fim da vida e o tratamento sem obstinação terapêutica, dirigido aos participantes do encontro regional europeu da World Medical Association – WMA, que ocorreu nos dias 16 e 17 de novembro, no Vaticano. Outras entrevistas concedidas por ele à IHU On-Line podem ser acessadas abaixo, no Leia Mais.
Christian de Paul de Barchifontaine, relações públicas das Organizações Camilianas, professor Márcio Fabri dos Anjos, que orientou as pesquisas de Leo Pessini na pós-graduação, e seus amigos e colegas pesquisadores de bioética, José Roque Junges, Volnei Garrafa, José Roberto Goldim e José Eduardo de Siqueira recordam a vida e a obra de Leo Pessini. Os depoimentos foram enviados por e-mail para a IHU On-Line.
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Christian de Paul de Barchifontaine é graduado em Enfermagem pelo Institut de Nursing Sainte Elisabeth, em Filosofia pelo Seminário de Tournai e em Teologia pelo Seminário de Bruxelas, mestre em Administração Hospitalar e da Saúde pelo Centro Universitário São Camilo e doutor em Enfermagem pela Universidade Católica Portuguesa. Atualmente, é Relações Públicas das Organizações Camilianas e professor de Bioética do Centro Universitário São Camilo.
Márcio Fabri dos Anjos é doutor em Teologia, professor do PPG em Bioética do Centro Universitário São Camilo, de São Paulo, e membro da Câmara Técnica de Bioética do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.
José Roque Junges é graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC-RS, mestre em Teologia pela Pontificia Universidad Catolica de Chile e doutor em Teologia Moral pela Pontificia Università Gregoriana de Roma, Itália. É professor de bioética nos cursos de graduação da área de saúde e professor/pesquisador do PPG em Saúde Coletiva da Unisinos.
Volnei Garrafa é graduado em Odontologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC-RS e doutor em Ciências pela Universidade Estadual Paulista – Unesp, com pós-doutorado em Bioética pela Universidade La Sapienza, Itália. É professor do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília – UnB.
José Roberto Goldim é graduado em Ciências Biológicas, mestre em Educação e doutor em Medicina (Bioética) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Biólogo do Hospital de Clínicas de Porto Alegre – HCPA desde 1981, atualmente é chefe do Serviço de Bioética do Hospital. É professor colaborador da Faculdade de Medicina da UFRGS e professor adjunto da Escola de Medicina da PUCRS.
José Eduardo de Siqueira é graduado em Medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, mestre em Bioética pela Universidad de Chile e doutor em Medicina e Ciências da Saúde pela Universidade Estadual de Londrina. Atualmente é Coordenador do Curso de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC-PR, da Revista Virtual de Bioética Latinoamericana, da Revista Brasileira de Bioética, e da Revista da Associação Médica Brasileira BIOETHIKÓS
IHU On-Line – Pode nos contar sobre a trajetória do padre Leo Pessini junto aos Religiosos Camilianos?
Christian de Paul de Barchifontaine – O padre Leo, como era conhecido, fazia questão de ser chamado assim. Com os Camilianos, começou cedo, ainda como seminarista, a ser responsável por uma revista que com o tempo chamou-se “O mundo da saúde”, que faz 40 anos de existência sem interrupção, revista científica, da qual era o editor-chefe com muito orgulho. Atualmente, a revista é editada pelo Centro Universitário São Camilo (SP). Foi também o grande incentivador do mestrado e doutorado em bioética sob a coordenação do doutor Saad Hossne. Infelizmente, o curso parou.
IHU On-Line – Como foi sua relação com o padre Leo Pessini durante os 30 anos em que trabalharam juntos?
Christian de Paul de Barchifontaine – A minha relação com o padre Leo durante 30 anos se deu por empatia com o trabalho, partilhamos a agenda: trabalhamos dez anos como Capelães no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, depois trabalhamos na área da educação, Leo como superintendente da União Social Camiliana e eu como reitor do Centro Universitário São Camilo (SP), e em 2014 ele tornou-se Geral dos Camilianos. Nossa ligação se deve também pelo nosso interesse pela bioética: coautoria na publicação de livros, pelo nosso interesse também em lecionar bioética no mestrado e doutorado em bioética, palestras e cursos nos cursos de especialização das graduações do Centro Universitário.
IHU On-Line – Pode nos contar sobre a atuação de Leo Pessini à frente das Entidades Camilianas Brasileiras, que compreende uma rede de 56 hospitais espalhados pelo Brasil?
Christian de Paul de Barchifontaine – Leo junto com o Dr. Saad foram os baluartes da Bioética no Brasil e no mundo. No trabalho, como superintendente da Sociedade Beneficente São Camilo, que reúne 45 hospitais no Brasil, e como superintendente da União Social Camiliana, Leo cuidava do atendimento dos pobres e necessitados e cuidava do respeito pelos valores cristãos: celebração dos momentos religiosos fortes, presença de um crucifixo nos quartos dos pacientes, e a presença de um capelão nos hospitais.
Leo junto com o Dr. Saad foram os baluartes da Bioética no Brasil e no mundo – Christian de Paul de Barchifontaine
IHU On-Line – O senhor orientou o mestrado e o doutorado de Leo Pessini. Como foi esse período da vida dele e que temas e problemas despertavam seu interesse de pesquisa?
Márcio Fabri dos Anjos – O mestrado de Leo Pessini espelha bem o link entre sua busca teórica e suas práticas. Estava no auge da ação pastoral de saúde no Hospital das Clínicas. Dava assistência espiritual a inúmeras pessoas em situações muito complicadas de saúde. Atendera a Tancredo Neves se despedindo da vida à beira de tomar posse como presidente do Brasil após longo período de ditadura. Veio assim ao mestrado impactado pelas interrogações de como lidar com a morte, no sentido espiritual. Escolheu o recorte da eutanásia, como desejo de um desfecho feliz em tais situações. Mas acabou se deparando com o outro lado social da morte feliz, que havíamos nomeado como mistanásia, a morte dos pobres esquecida nos porões da sociedade. Preferindo chamá-la de morte social, deu com o mestrado um grande passo para considerar seriamente os fatores sociais que cercam as situações clínicas. Ao assumir a distanásia para seu doutorado, amadurecia o interesse em aprofundar o conhecimento das relações entre os valores culturais de uma sociedade tecnológica e o medo da morte que determinava seu ocultamento e a pertinácia terapêutica para sustentar a vida fisiológica a todo custo. Sua tese resultou em um denso tratado de muitas páginas que mereceu publicação em várias línguas. Reconhecia que o mestrado e doutorado foram decisivos para a organização de seu pensamento e principalmente no modo de ver os problemas.
IHU On-Line – Como teologia moral e bioética se relacionam na obra de Leo Pessini?
Márcio Fabri dos Anjos – A herança do pensar teológico em interação com a filosofia facilitou muito sua produção na bioética em questões de fundamentos. Grandes interrogações persistentes no discurso bioético como o sentido do viver, do morrer, valores e razões para os relacionamentos, são temas que lhe eram conhecidos pelo estudo teológico. Tinha ali muitas bases a partir de onde assumir o diálogo plural em bioética, e pensar propostas numa sociedade em profunda crise de sentidos. Alguns temas como a intencionalidade moral, formulada pelo tomismo, lhe forneceram ferramentas operacionais no discernimento em dilemas bioéticos. Conceitos como “duplo efeito”, “mal maior”, diferença moral entre “deixar acontecer, e fazer acontecer”, foram distinções usadas de forma explícita em seu discurso bioético. E não menos importante, está o influxo de uma vertente da moral cristã voltada para práticas virtuosas e que colocou a ética mais em relação com a espiritualidade do que com o dever regrado por normas. Esse aspecto parece ter conferido às obras de Pessini um constante horizonte de esperança na solução dos mais graves problemas bioéticos.
Em consonância com seu interesse pelos problemas éticos da realidade hospitalar, direcionou a sua investigação, tornando-se uma referência em questões relativas ao final da vida, morte digna e eutanásia – José Roque Junges
IHU On-Line – Entre os temas recorrentes na obra de Leo Pessini sobre bioética, destacam-se suas reflexões sobre o cuidado e a ética da saúde. Como esses temas se inter-relacionam na obra del
e e qual sua importância nas discussões sobre bioética?
José Roque Junges – Em consonância com seu interesse pelos problemas éticos da realidade hospitalar, direcionou a sua investigação, tornando-se uma referência em questões relativas ao final da vida, morte digna e eutanásia com a publicação de uma trilogia: “Distanásia: até quando investir sem agredir” (Loyola, 2a.ed., 2007), “Eutanásia: por que abreviar a vida” (Loyola, 2005) e “Humanização e cuidados paliativos” (Coord. 6a.ed., 2014). Sua análise foi importante para a definição dos termos eutanásia e distanásia, com a explicitação do seu significado e avaliação ética. Sua reflexão ética e espiritual sobre o acompanhamento de moribundos foi essencial para a compreensão e a difusão dos cuidados paliativos. Sua assessoria ajudou no esclarecimento e assimilação do termo ortotanásia pelo Conselho Federal de Medicina como uma opção eticamente aceitável entre os dois extremos eutanásia e distanásia, de acompanhar pessoas em processo de morte, como um caminho ético para assegurar o respeito a uma morte digna a essas pessoas.
Volnei Garrafa – Além de sua reconhecida simpatia e generosidade, o grande legado acadêmico deixado por Leo foi sua obra relacionada com a finitude da vida humana, expressa muito especialmente, no meu entendimento, nos dois principais livros da sua longa e fecunda produção literária: “Eutanásia – por que abreviar a vida” e “Distanásia – até quando prolongar a vida”, ambos indispensáveis em uma biblioteca que se pretenda completa na área de bioética no Brasil. Principalmente aos médicos e estudantes de Medicina, que lidam frequentemente com a morte sem estudá-la em nenhum momento em seus currículos de estudo como fenômeno que transcende a biologia, os livros de Leo Pessini são imprescindíveis.
IHU On-Line – Como os valores cristãos se manifestam na obra de Leo Pessini sobre bioética, cuidado e ética da saúde?
Márcio Fabri dos Anjos – A presença de valores cristãos é inequívoca na obra de Pessini. As raízes cristãs de sua educação familiar lhe facilitaram a vocação religiosa na Ordem fundada por Camilo de Lellis (1550-1614) para o cuidado dos enfermos. Esses valores cristãos estão explícitos em suas organizações na pastoral da saúde e escritos diretamente voltados sobre a espiritualidade do cuidado. De modo indireto, mas claro, estão também presentes nos critérios com que propõe a bioética no enfrentamento de grandes questões existenciais como a injustiça e iniquidades sociais, o respeito à dignidade de todo ser humano, e o compromisso com o bem de todos. Para as relações interpessoais nos cuidados de saúde parece se esforçar sempre em oferecer um horizonte maior para as pessoas respirarem esperança mesmo nos momentos mais difíceis.
A presença de valores cristãos é inequívoca na obra de Pessini – Márcio Fabri dos Anjos
José Roque Junges – A formação teológica deu a Leo Pessini as condições para desenvolver e refletir sobre as interfaces entre bioética e teologia, dentro da perspectiva dos valores do Reino e da libertação. Esta perspectiva se manifesta, na sua obra, antes de nada, por sua opção pelos pobres, quando trata de questões de saúde pública, e sua defesa do acesso universal aos serviços de saúde. Outro aspecto de sua perspectiva cristã é a sua contínua e reiterada preocupação com o enfoque pastoral e espiritual dos problemas da bioética. Isso se revela no modo de abordar as questões éticas do final da vida, principalmente seu interesse pelos cuidados paliativos.
IHU On-Line – Leo Pessini também tratava de bioética numa perspectiva interdisciplinar, dialogando com as demais ciências, como a medicina, a biologia, a genética e as novas tecnologias. Quais são as contribuições dele para este diálogo interdisciplinar?
José Roque Junges – A perspectiva interdisciplinar é uma característica básica da bioética que Leo Pessini soube desenvolver. Sua formação filosófica e teológica consistente lhe abria as condições para dialogar e assimilar conhecimentos e práticas da área da saúde que ele aprendeu a conjugar por sua atuação nos cenários hospitalares. Sua preocupação com o enfoque pastoral das questões da saúde o obrigava a saber relacionar a reflexão filosófico-teológica com saberes e práticas dos serviços de saúde.
Volnei Garrafa – Respondo à pergunta com o relato de uma história real. Conheci Leo em 1995, quando participamos conjuntamente em uma mesa-redonda que tratava da finitude da vida, durante o I Congresso da Federação Latino-Americana de Instituições de Bioética – FELAIBE, realizado em São Paulo. Era uma época em que estavam sendo iniciadas atividades mais orgânicas no contexto histórico da bioética brasileira, que já se mostrava fortemente interdisciplinar. A mesa foi coordenada por um dos pró-reitores da USP na época e composta por três expositores/debatedores, todos não médicos: um professor de direito; eu – formado em odontologia e com pós-doutoramento em bioética; e Leo – sacerdote já especializado em bioética e ex-capelão do Hospital das Clínicas da USP. A sala estava completamente lotada. Terminadas as exposições e aberto o espaço para intervenções e perguntas, um médico presente na plateia (que anos mais tarde tornou-se presidente do Conselho Federal de Medicina…) imediatamente tomou a palavra e manifestou “não estar entendendo mais nada”, uma vez que é o médico o profissional legalmente responsável pelo atestado de óbito. O inquisidor monopolista reclamava o fato da comissão científica de um congresso de âmbito internacional ter escalado um advogado, um dentista e um padre para discutir a temática da morte. Eu já estava me apressando para responder à inconveniente intervenção — confesso que com alguma impaciência — quando Leo, que eu acabara de conhecer, me sussurrou ao ouvido de modo sábio: “Espera, o público falará por nós”. Não foi diferente. Todas as intervenções que se seguiram foram críticas ao referido personagem que, naquele quase final de século XX, ainda não tinha tido notícia das peculiaridades da inter e transdisciplinaridade, que Leo Pessini dominava como poucos, com maestria e segurança. Incluindo a temática da morte, fenômeno absolutamente polifacético e interdisciplinar.
José Roberto Goldim – O professor Leo tinha esta habilidade de transitar com naturalidade entre diferentes áreas de conhecimento. Ele praticava interdisciplinaridade. A sua proposta do mestrado da São Camilo é um bom exemplo de como colocar a interdisciplinaridade em prática.
O professor Leo tinha esta habilidade de transitar com naturalidade entre diferentes áreas de conhecimento. Ele praticava interdisciplinaridade – Roberto Goldim
José Eduardo de Siqueira – Compreendeu como poucos as diferentes dimensões do sofrimento humano, condição essa que permitiu que colaborasse enormemente com a humanização da medicina, respeitado por profissionais de saúde não somente por sua densa produção acadêmica, mas, sobretudo, por sua humildade e pessoa agregadora que soube conviver de maneira harmoniosa com as diferentes correntes da bioética. Ensinou-nos que o horizonte da ética é muito mais amplo e complexo que o da medicina tecnológica.
IHU On-Line – Qual era a relação de Leo Pessini com religiosos, teólogos, filósofos, médicos e cientistas no tratamento de questões de bioética?
Christian de Paul de Barchifontaine – Com os colegas religiosos, teólogos, filósofos, médicos e cientistas, Leo era sempre animador e animado, com o sorriso, convidando à reflexão bioética, porque Leo vivia a bioética, partilhando as descobertas. Era um pesquisador ferrenho e “um rato de biblioteca”. Viajei muito com ele e não podíamos passar na frente de uma livraria que ele se enfiava, passando o tempo disponível! Com os colegas religiosos, ele cuidava deles como um pai, se informando da saúde de cada um.
Além da bioética, ele se dedicou 40 anos à pastoral da saúde. Ele fez parte do nascimento da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. A vida dele foi baseada nos valores cristãos e na ética.
Volnei Garrafa – A relação de Leo com os cientistas e a ciência era de proximidade, de colegas. Além de especialmente querido, era muito respeitado. Afinal, além de padre, no decorrer de sua vida passou exercer também um papel de destaque no campo da educação e das ciências, notadamente na bioética. Tanto no seio da Sociedade Brasileira de Bioética, como junto a programas de graduação e pós-graduação em diferentes universidades e variadas áreas, mas especialmente na bioética, ele desenvolveu papel bastante ativo. No caso da Universidade de Brasília, da qual sou professor há 46 anos, esteve numerosas vezes conosco ministrando memoráveis conferências aos nossos alunos de especialização, mestrado e doutorado, versando sobre temas geralmente relacionados com a finitude da vida, que dominava como poucos, dando à morte um sentido muito mais amplo que o médico-biológico de mero cessamento dos fenômenos vitais, mas incluindo na reflexão sua indispensável relação com a filosofia, as diferentes culturas, o direito, as ciências sociais, a religião…
José Roberto Goldim – A obra do professor Pessini teve grande repercussão no meio médico. As suas reflexões sobre o final de vida, eutanásia, prolongamento indevido de cuidados e outros temas que abordou, foram e são objeto de discussão e reflexão dos profissionais de saúde.
IHU On-Line – Qual é o legado da obra de Leo Pessini para o debate sobre bioética no Brasil?
Márcio Fabri dos Anjos – Leocir Pessini deixou realmente um lastro de realizações que representa um legado para a bioética no Brasil. Ressaltaria duas dimensões dessa relevante contribuição: um lado organizacional com que abre espaços para estudos e reflexões; e outro referente às características de temáticas e abordagens. Suas iniciativas organizacionais permitem entender melhor seu legado conceitual, que se tece em estreita relação com suas práticas. Como membro da Ordem camiliana, ainda jovem encarregado do atendimento pastoral no Hospital das Clínicas em São Paulo, participa nos anos 80 da fundação do Instituto Camiliano de Pastoral da Saúde – ICAPS, importante germe de reflexão com agentes, através de Boletins que antecedem a atual revista científica “O Mundo da Saúde” (1997); e através de quase 40 congressos de Humanização e Pastoral da Saúde até agora. Esse processo culmina com a criação do primeiro curso stricto sensu de bioética no Brasil, que chega ao final de seu ciclo neste ano com a formação de mais de 140 mestres e de 30 doutores. Leo Pessini se destacou também por expressiva interatividade internacional, entre outras, trazendo conferencistas para eventos, provocando traduções de autores como Beauchamp & Childress, Potter, Engelhardt, D. Gracia, e representando o Brasil na Associação Internacional de Bioética, ampla visibilidade à produção brasileira.
Seu legado teórico começa por sua linguagem aberta ao diálogo com diferentes tendências na sociedade plural, sem imposição de suas próprias convicções cristãs – Márcio Fabri dos Anjos
Seu legado teórico, a meu ver, começa por sua linguagem aberta ao diálogo com diferentes tendências na sociedade plural, sem imposição de suas próprias convicções cristãs. Por isso mesmo, embora conhecido como padre Leo, era respeitado em todos os ambientes como bioeticista aberto às diferenças. Seu discurso bioético se caracteriza pela preocupação com os fatores interferentes ou provocadores das desigualdades, e com as carências espirituais das pessoas, em um sentido laico, para fazer frente aos dramas existenciais principalmente na doença ou fim de vida. No conjunto de seus muitos escritos, transparece assim um empenho descritivo dos diferentes ou emergentes contextos que desafiam a bioética, e uma busca de fatores socioestruturais em vista de propostas de ação. Em síntese, a meu ver o legado de Leo Pessini se caracteriza por iniciativas em favor de espaços grupais para pensar a bioética e pelo realce em valores e sentidos capazes de darem dignidade aos seres humanos em seus dramas de existência e nas transformações socioculturais.
José Roque Junges – Ele é um dos fundadores da bioética no Brasil, principalmente em questões éticas relativas à realidade hospitalar. No início de sua carreira trabalhou como capelão no Hospital de Clínicas da USP, época em que acompanhou os últimos dias do ex-presidente Tancredo Neves. Para capacitar-se para essa tarefa de pastoral hospitalar realizou cursos de especialização em bioética e pastoral clínica em um pós-doutorado na Edinboro University nos Estados Unidos. Essa preocupação ética com o cuidado dos enfermos está em plena consonância com o carisma de sua congregação religiosa, os camilianos, da qual foi encarregado máximo mundial antes de falecer. Antes de assumir essa função de coordenação internacional de sua congregação, foi vários anos reitor do Centro Universitário Camiliano de São Paulo, especializado em cursos da área da saúde e onde foi responsável pela criação de uma pós-graduação em bioética e de uma revista chamada Bioethikós. Incentivou muitas publicações e traduções de obras de bioética numa parceria entre o Centro Universitário Camiliano e as Edições Loyola. A obra “Problemas atuais de Bioética”, em coautoria com Christian de Paul de Barchifontaine, revista e reeditada várias vezes, tornou-se um manual de aprendizado e consulta de muitos estudantes de bioética. Leo Pessini apoiou a tradução e escreveu o prefácio de duas obras fundamentais: “Bioética: Ponte para o futuro” e “Bioética Global” de Van Rensselaer Potter, iniciador e definidor da identidade da bioética. Durante todo o seu percurso acadêmico, ele sempre demonstrou uma preocupação ética com os problemas de saúde da população brasileira e, especificamente, pela humanização dos serviços hospitalares.
Volnei Garrafa – Leo Pessini foi um personagem muito especial que soube equilibrar sua religiosidade católica com os difíceis e controversos caminhos do respeito ao pluralismo moral trabalhado majoritariamente no campo da bioética. Tanto isso é verdade que frequentemente — embora sacerdote — era requisitado para ministrar conferências e outras atividades acadêmicas em instituições laicas de ensino e pesquisa, especialmente universidades públicas. Iniciou pela seara da bioética publicando um livro sobre a longa agonia do falecido presidente Tancredo Neves, um caso clássico de domínio público sobre a distanásia, que nos Estados Unidos é entendida pela expressão futility, ou seja, futilidade (terapêutica). Logo a seguir, começou a organizar cursos de bioética via instituições camilianas no movimento pastoral de saúde, em São Paulo. A criação pioneira do programa inicialmente de mestrado (2007) e posteriormente de doutorado (2010) em bioética, no Centro Universitário São Camilo de São Paulo — hoje, infelizmente, em processo de desativação —, teve nele um personagem decisivo.
Leo Pessini soube equilibrar sua religiosidade católica com os difíceis e controversos caminhos do respeito ao pluralismo moral trabalhado majoritariamente no campo da bioética – Volnei Garrafa
José Roberto Goldim – O professor Leo Pessini deu contribuições importantes para a bioética brasileira. Seus livros inspiraram muitas pessoas a entrarem no debate destes temas. A sua presença cativante nas atividades públicas fazia com que as pessoas, ao perceberem a sua vibração quando falava destes temas, também se mobilizassem a refletir.
A sua proposta de criação do mestrado em bioética foi importante para dar uma divulgação a esses temas, assim como a publicação da revista Bioéthikos. O nosso querido padre Leo deixa uma importante obra de reflexão sobre temas importantes, especialmente sobre o final de vida.
Christian de Paul de Barchifontaine – É com grande pesar que perdemos um dos maiores especialistas em bioética do mundo. Um grande especialista convidado em congressos e fóruns realizados pelas maiores universidades e associações corporativistas do mundo na área da saúde como palestrante. O legado dele é compilado em vários livros e artigos em revistas nacionais e internacionais.
José Eduardo de Siqueira – Conheci Leo em 1996, por ocasião do I Congresso da Federação Latino-americana de Instituições de Bioética – FELAIBE que acontecia no Centro de Convenções Rebouças. À época que nos conhecemos, ele completava onze anos como Capelão do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e já acumulava publicações sobre a terminalidade da vida, como, entre outras, “Morrer com dignidade”. Nos dez anos seguintes completou sua trilogia sobre a temática com as obras “Distanásia: até quando prolongar a vida”, “Eutanásia: Por que abreviar a vida”. Essa última publicada em 2004 pela Edições Loyola, que tive o privilégio de redigir a apresentação. Nutrimos uma longa amizade que resultou inclusive em produção conjunta de artigos sobre diferentes temas de bioética. A última publicação na Revista Bioética do Conselho Federal de Medicina, em sua versão impressa 2019;27(1):29-37 [Reflexões sobre cuidados a pacientes críticos em final de vida]. Estivemos juntos na Comissão Nacional de Revisão do Código de Ética Médica do CFM, ocasião em que tivemos a oportunidade de sugerir Princípios Fundamentais do exercício da medicina, particularmente sobre Terminalidade da Vida e Cuidados Paliativos.
Deixou enorme legado para a bioética brasileira, latino-americana e mundial. O maior Congresso Mundial de Bioética da International Associations of Bioethics realizado em 2002, em Brasília, teve na pessoa dele o maior protagonista. Do ponto de vista acadêmico, deu início a um dos Programas de mestrado e doutorado em Bioética melhor conceituado pela CAPES no Brasil. Foi um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Bioética e, na condição de sacerdote católico, soube dialogar com todas as correntes da bioética; amigo dos mais importantes bioeticistas do mundo como Tristran Engelhardt, James Drane e Diego Gracia.
Se considerarmos os estudos de Lawrence Kolhberg sobre o desenvolvimento moral do ser humano, certamente Leo ocupa a categoria de pessoas pós-convencionais, aquelas que dedicam suas vidas aos interesses da comunidade, sobretudo dos mais vulneráveis, pessoas que encontram-se da ante-sala da morte. Por ter tido o privilégio de conviver com esse ser humano raro, o coloco na categoria das pessoas iluminadas, melhor, valendo-me das palavras de Bertold Brecht, reconheço que existem homens que lutaram um dia e foram bons, aqueles que lutaram um ano e foram melhores e aqueles que lutaram toda a vida por uma causa, esses sempre serão imprescindíveis e aí está o inesquecível amigo Leo Pessini.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Márcio Fabri dos Anjos – Acho que a trajetória de Leo Pessini reforça alguns aprendizados ao considerar histórias de vida. Ressaltaria a importância de convicções profundas que confiram impulso e direção ao viver; convicções fortes, mas abertas para se enriquecer no diálogo e nas experiências da vida. Diria também que na busca de coerência entre teorias e práticas emerge a autoridade de um discurso e a respeitabilidade que Pessini teve. Pude participar, em parte, de como ele próprio enfrentou a angústia de ver com lucidez o desfecho iminente de seu final de vida. Não escondia o peso da angústia, mas sempre terminava suas mensagens dizendo “com serenidade e esperança”. Ali me pareceu estar a síntese do legado que deixou.
José Roque Junges – Leo Pessini como sacerdote e religioso se sentia à vontade em ambientes seculares onde era estimado por muitas pessoas sem fé por sua postura de respeito ao pluralismo e abertura aos valores da sociedade democrática. Em tempos de clericalismo e de intransigência religiosa e moral, sua atitude evangélica de acolhida e de diálogo são um exemplo para as pessoas de fé na Igreja que querem discutir e refletir sobre questões da bioética.
Em tempos de clericalismo e de intransigência religiosa e moral, sua atitude evangélica de acolhida e de diálogo são um exemplo para as pessoas de fé na Igreja que querem discutir e refletir sobre a bioética – José Roque Junges
Volnei Garrafa – Sim; aproveitar para registrar mais uma passagem real que tive com Leo e que vale a pena ser registrada. Foi em uma atividade paralela à quarta edição do Congresso Brasileiro de Teologia Moral realizado em Fortaleza no final dos anos 1990 (não recordo exatamente o ano…), no qual eu era conferencista convidado. Minha amizade com ele já tinha florescido e se consolidado; em pouco tempo éramos “amigos de longa data”. Com a liberdade decorrente dessa sólida relação, resolvi colocar uma questão difícil para Leo. Tomei como referência o mestre que me introduziu e guiou pelos caminhos da bioética — o professor, deputado e senador italiano e europeu Giovanni Berlinguer, sem dúvida um dos grandes personagens da saúde pública mundial e que, segundo o saudoso sanitarista Sergio Arouca, foi a inspiração e o verdadeiro patrono da Reforma Sanitária Brasileira. Disse-lhe: “Entre as cinco pessoas que conheço e que são mais corretas, íntegras, justas e que se preocupam em ajudar as outras pessoas, está meu querido mestre e amigo Berlinguer. Mas como você sabe, caro Leo, Giovanni é comunista e ateu. A pergunta então é a seguinte: quando morrer, Giovanni vai para o céu ou para o inferno?” Sem pestanejar um só segundo, Leo me respondeu “na lata”: “para o céu, pois o que vale é a intenção, é a caminhada de vida!”. Nunca mais esqueci aquele momento e aquelas palavras… Esse era o Leo Pessini na sua essência: um homem de bem e cidadão do mundo na essência da palavra. Aberto, paciente, tolerante, plural e profundamente generoso.
José Roberto Goldim – A disponibilidade do professor Pessini em participar de eventos para públicos variados e não apenas para pessoas já interessadas em bioética, fez dele um importante divulgador de temas e questões significativas. Ele não “pregava apenas para os convertidos”, mas também e principalmente para pessoas que ainda não estavam sensibilizadas pelas reflexões bioéticas.
O padre Leo foi um grande companheiro nesta caminhada de implantar a bioética no Brasil. Foi uma pessoa muito agradável de se conviver e de trocar ideias. É uma perda para todos nós, especialmente para quem não pôde conviver com ele.
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